sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Recomeço

Não sabia há quanto tempo já estava ali quando despertei naquele momento, os olhos ainda sensíveis à claridade da luz. Uma espécie de grade de madeira me cercava, e por cima rostos felizes me admiravam, a maioria um tanto familiar. Movimentos de acenos e beijos vinham em minha direção, até o tumulto se dispersar pelo aposento muito bem decorado. Apenas um rosto de cabelo comprido manteve-se por mais algum tempo, com um sorriso ainda estampado. As mãos tocaram um objeto pendurado à minha frente, fazendo-o rodar em círculo, com o ritmo lento de uma música conhecida. Aos poucos, o lugar tornava-se silencioso, exceto pelo constante murmúrio que eu ouvia através da porta fechada. O feixe de luz horizontal era a única iluminação.

O vazio, o escuro, e, sobretudo, a repentina e inexplicável sensação de incômodo, provocaram as minhas lágrimas e gritos desesperados. Uma figura de tamanho alto entrou apressada no aposento, acomodou-me em seus braços e balançou o corpo com cautela, movendo-me assim, de um lado para o outro. A grande satisfação veio apenas quando me trouxeram um objeto que continha um delicioso líquido interno.

Algo com rodas conduziu-me para um outro ambiente, maior e iluminado. Observei as imagens de numerosos rostos, dos mais diferentes traços. As expressões, embora variassem, mantinham sempre um ar de alegria. Vozes de alto e baixo tom se misturavam, formando um contínuo sonoro indecifrável. A música acelerada e em alto volume, eu desconhecia. Enfeites e decorações de cores claras ocupavam grande parte do lugar. Ao centro, uma mesa redonda colorida, cobiçada por mãos e bocas famintas.

No entanto, nada me roubou mais a atenção do que o espaço quadrangular na parede, semelhante a uma pintura. Pontinhos de luz branca cintilavam na escuridão azul, alguns com maior intensidade. Naquele instante, todas as mãos se juntaram. Os olhares oscilavam entre si, e as vozes saíam em perfeita sintonia, num tom apreensivo e crescente. O último som foi um grito, seguido de abraços, tilintar de taças, e barulhos que não pareciam sair dali. Ao lado dos pontos brilhantes, surgiam luzes coloridas, que se desfaziam e reapareciam rapidamente. Cada clarão acompanhava um estrondo, não menos barulhento que o anterior.

Ainda em clima de euforia, os risos não cessavam. O rosto do cabelo comprido se aproximou, me encarando com um olhar expressivo e encantador. Movendo os lábios, pronunciou palavras que juntas formaram “Feliz ano novo”. Não sei o que significa, mas tentarei lembrar para, quem sabe, usar em uma futura noite como esta.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Não entendo

Sinto cada vez mais distanciar-me das pessoas. Não propositalmente. São os seus propósitos que me causam tamanha repulsão, suas ideias e atitudes infames. Não entendo como o dinheiro pode estar acima das relações humanas. Não entendo a necessidade de consumir o que é novo, não entendo esse prestígio que se dá às marcas, não entendo a fidelidade à moda atual. É como uma imposição, que aceitam inconsciente, ou – pior – conscientemente. Não entendo essa estranha concepção de valor, não entendo esse mundo que trata o material como prioridade. O que eu obtiver de concreto não irá me definir, não me fará melhor, nem mais feliz. Eu posso precisar de muito, mas jamais me chegará às mãos este “muito”, pois são desejos que eu quero sentir, sonhos que eu quero viver, experiências que eu quero guardar. Não entendo a lógica do “ter” e o abandono do “ser”.
Não entendo.
E me dói tentar entender.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

O espelho

Recordo-me bem daqueles tempos. Não pela boa memória, mas principalmente por ter sido uma época marcante. Eu devia ter os meus dezesseis anos. Morava sozinha com minha mãe, e raramente visitava meu pai, que nos deixou quando eu ainda era criança. Pouco havia de semelhança entre nós duas, exceto o gosto pela música que herdei.

Eu costumava tocar flauta nas horas vagas, até decidir que queria mesmo aprender a tocar piano. O pesado e empoeirado piano no antigo quarto da minha avó seria finalmente reutilizado, e o próprio quarto tornar-se-ia o novo aposento para as minhas aulas particulares. Foi nesse primeiro dia de aula que teve início todo o mistério que me envolveria por bastante tempo.

Não tinha o menor jeito de professor. Era alto, magro, usava sempre óculos escuros, um chapéu marrom e roupas pretas, além de uma bengala aparentemente dispensável: ele era jovem e não mancava. Pude perceber, contudo, a sua enorme experiência como professor e pianista.

O fato de ser um homem frio e de falar pouco me intrigava. Mas o que mais me chamava a atenção era o espelho que carregava consigo, todos os dias. Durante as aulas, de poucos em poucos minutos, ele retirava do bolso um pequeno espelho de moldura frágil, colocava o óculos na mesa, e fixava o olhar sombrio na imagem pálida refletida. Inquieta, eu fingia estar distraída nessas horas, ou quebrava o silêncio com a primeira pergunta que viesse à cabeça: “Quer um suco?”.

Essa situação se repetiria ainda por muitas vezes, não fossem pelas mudanças de planos do professor. Três meses depois, ele se aposentou, sem nenhum motivo claro, e com um estranho pedido de desculpas por carta. Por um lado me senti culpada, por ter me mantido sempre muito distante; por outro, arrependida, por nunca ter perguntado nada.

Desde aquele dia, não me interessei mais em ter aula. O pouco que aprendi no piano já era o suficiente para eu passar as minhas tardes de sábado tocando, com a lembrança antiga, porém viva, daquela figura esquisita.

Atualmente, moro num apartamento simples, sou formada em psicologia, e não me casei. Acredito que as pessoas vivem melhor sozinhas. E apenas hoje, aos trinta e nove, pude compreender o enigma que me consumiu durante anos.

Numa dessas conversas informais com meus pacientes, consegui o contato do meu antigo professor, através de um que disse ter estudado com ele. Escrevi uma carta pedindo-lhe que fosse ao meu apartamento, e assinei como uma ex-aluna que gostaria muito de revê-lo.

Na primeira semana, considerei a ideia da carta inútil, até ouvir o som da campainha no domingo à noite. Fora as vestes – idênticas àquelas usadas há alguns anos atrás – eu não o reconheceria. Na época, supunha que fosse uns dez anos mais velho que eu, e agora, a diferença parecia drástica. Era praticamente um idoso.

“O senhor não deve se lembrar de mim”, comecei, “mas, um pouco antes de se aposentar, me deu aulas particulares de piano”. Por um instante, pensei que fosse manifestar alguma recordação, mas ele apenas ergueu a sobrancelha e continuou sério, oscilando o olhar entre mim e o novo piano na sala. “O que você quer, afinal?”

Eu não pretendia ser tão direta antes de ter uma conversa que contribuísse para uma possível intimidade, mas não tive escolha. “O espelho... pra que se olhar tanto no espelho?”.

Ele se assustou com a pergunta. E eu, ainda mais, quando percebi o movimento da sua mão direita até o bolso, retirando o mesmo espelho. Sua cara não era a de quem confiava em mim, mas algo o fez falar, talvez a surpresa que aquela situação lhe causava. “Sempre vivi assim, e você é a primeira que demonstra curiosidade, mesmo depois de tanto tempo.”

Eu não sabia se sorria ou se permanecia séria. Fiquei com a segunda opção.

“Quando pequeno, descobri que sofria de uma doença grave, uma doença sem cura que provoca o envelhecimento acelerado. O médico recomendou que eu levasse uma vida normal. No início, eu tentei. Dediquei-me aos estudos, participei de várias apresentações, e depois comecei a dar aulas. Mas, com o tempo, tudo parecia perder o sentido. A cada minuto, eu me sentia mais velho, mais fraco, e sentia a necessidade de me olhar no espelho para conferir o meu estado. Essa obsessão me fez largar o trabalho e, de certa forma, a vida. Eu não pensava em nada que não fosse a doença. É como se eu vivesse esperando pela morte.”

Demorei alguns minutos para digerir aquele fluxo de palavras, ditas por uma voz cansada e relativamente baixa. Comecei a refletir sobre o que vestia: talvez o preto constante significasse um luto prévio pela sua morte; o chapéu seria para esconder uma futura calvície; a bengala, para prevenir qualquer problema antecipado nas pernas; e o óculos, para disfarçar a tristeza do olhar.

“O tempo não passa só pra você”, eu disse, sem considerar se seria melhor me manter calada. Seus lábios deram indícios de abrir um sorriso, mas logo se confundiram com a mesma expressão de antigamente, embora com um rosto não mais jovem. Ele se levantou, e sem dizer nada foi embora, deixando o espelho em cima da cadeira que sentara. Ainda não sei se foi de propósito. Quase o guardei como lembrança, mas preferi jogá-lo no lixo. Sentei para tocar piano, com meus pensamentos ainda fervendo e a leve impressão de que ele voltaria um dia.

sábado, 17 de julho de 2010

O silêncio das ideias

A ausência de palavras a serem ditas é reflexo de um pensamento feroz que já as consumiu.

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Música: uma arte poética


Música é a palavra transformada em canção
é o verso que ganhou vida
é a leitura em forma de som

Música é a manifestação artística da poesia,
que por si só já tinha arte, já tinha rima

Música vai além do que é só lido, ou só falado
É a mais forte em termos de expressão:
porque sozinha carrega as letras, carrega o poema, carrega a canção.

terça-feira, 1 de junho de 2010

Eu amo, Tu amas, Ele ama, Nós amamos, Vós amais, Eles amam?

Há os que dizem que a produção de um bom texto depende apenas do conhecimento básico da língua, desconsiderando qualquer tipo de regra tradicional;
outros, conservadores por sua vez, acreditam que a escrita precisa seguir – cuidadosamente – as normas da nossa gramática.
Eu, particularmente, discordo de ambos.
A questão não está na utilização correta ou incorreta do português: o bom escritor é aquele que conhece todas as regras da sua gramática, e, conscientemente, as quebra se lhe convier.

domingo, 30 de maio de 2010

Vida que arde!

Quando ela se foi, parecia que eu tinha perdido uma parte de mim. Aquela casa jamais seria a mesma. Eu não queria comer, eu não queria dormir, eu não queria viver. Até meus amigos, outrora preocupados comigo, deixaram de me procurar, cansados de esperar a porta ser aberta em suas frequentes e inúteis visitas. E essa tristeza toda me corroía por dentro, me matava aos poucos. A vida continuava lá fora, mas eu me trancara no meu mundo, naquele quarto escuro em que minha presença não tirava o seu aspecto morto e vazio.
Certa manhã, num movimento quase que inconsciente, abri a janela. Senti os raios solares tocando suavemente meu rosto, como se quisessem me despertar para a vida. E então pensei que aquele mesmo sol que me aquecia, ao mesmo tempo iluminava vales, montanhas, rios, e outros tantos lugares. Era incrível imaginar que ele se levantava todos os dias, há bilhões de anos, para dar brilho ao planeta, para dar vida a cada ser que aqui habitava. Olhei para o céu, para a rua, para as pessoas, para a cidade, e senti – pela primeira vez em tanto tempo – uma estranha vontade de sorrir. Naquele momento, esqueci minha saudade, esqueci minha dor, e me lembrei que estava vivo.

(adaptação de uma cena de Sinhá Moça)

terça-feira, 4 de maio de 2010

Eu não procuro um sentido para a vida,
eu procuro uma vida que me faça sentido.
Aquela lá fora é complexa demais para a simplicidade a que aspiro.

sexta-feira, 23 de abril de 2010

Quisera

Quisera eu ser imortal
não para usufruir a eterna beleza da vida
mas para testemunhar a infinita vivacidade das palavras.

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Pensamento

Eu não preciso de uma verdade absoluta para viver
Eu sonho, eu busco, eu invento
Encaro críticas e desafios
Só não suporto a aceitação pacífica daquilo que nomeiam realidade.

terça-feira, 20 de abril de 2010

O drama da noite


Todas as noites era a mesma coisa. O mesmo tormento, o mesmo pesadelo. Em seguida vinha o susto, acompanhado pela respiração ofegante e aflitiva do menino. Acordava sempre no meio da madrugada, no mesmo horário. Era claro o sentimento de pavor que continha em seus olhos vermelhos arregalados. Corria para o banheiro e lavava o rosto, com as mãos trêmulas e o corpo agitado. Apesar de ser um momento repetitivo e já esperado, o efeito do susto não diminuía. Parecia piorar a cada noite. A mãe entrava no quarto depois de poucos segundos, como se já estivesse aguardando por aquilo. Abraçava o menino, e lhe dizia palavras acolhedoras, com a tentativa de acalmá-lo.

“Sonhei que você tinha partido. Pra um lugar distante e escuro. Eu nunca mais ia te ver.”
Era mais ou menos o que repetia, com a voz seca, após recuperar o fôlego. A mãe esboçava um sorriso forçado, porém sincero.
“Eu estou aqui. Nunca vou te deixar.”
Os olhos úmidos do menino embaçavam sua visão, lhe causando uma sensação de tontura e fraqueza. Embora aliviado, permanecia angustiado. Sabia, de alguma forma, que não estava tudo bem.


Durante o dia, a casa costumava ficar silenciosa. O pai ocupava a maior parte do tempo trancado no escritório. A irmã, mais nova, gostava de desenhar no tapete da sala. E sua mãe só chegaria mais tarde, quando todos já estivessem dormindo. Diferente das noites, as tardes aparentavam ser bem calmas. Não havia muito o que se fazer. Para passar o tempo, o menino criava histórias em sua cabeça. Inventava personagens e os colocava em tramas aventureiras. Era o modo que encontrava de afastar o clima morto que habitava sua casa.
 

Numa dessas noites, o pai se deparou com o filho sentado no chão frio da sala, imóvel, com o olhar perdido.
“O que faz aqui a essa hora?”, perguntou, provocando um leve susto no menino.
“Nada. Só estou esperando a mamãe.”
O pai puxou-o pelo braço e o fez ir para o quarto.
“Não é hora de criança ficar acordada!”
O tom de voz nervoso e baixo espantou-o. Como se já não bastasse a falta de atenção aos filhos, era obrigado a ouvir palavras que soavam rudes vindas de seu pai.


Veio a madrugada. Outra vez, o pesadelo. Via imagens confusas. Ouvia barulhos estranhos de buzinas de carros, e uma mulher, berrando. Acordou com o próprio grito. Dessa vez, a mãe já estava ao seu lado, apertando forte sua mão suada. Seu choro foi abafado pelos ombros da mãe, nos quais apoiava sua cabeça.
“Por quê? Por que isso acontece comigo?”
Não houve resposta.
“Eu preciso de você. Preciso que volte mais cedo. Quero que fique do meu lado até eu adormecer. Faz isso por mim?”
“Eu estou do seu lado”.
Por mais que desejasse confortá-lo, não conseguiu.


Na manhã seguinte, acordou com uma forte dor de cabeça, sem lembrar em que momento havia dormido na noite anterior. Procurou sua mãe, inutilmente, com a certeza de que já teria saído para trabalhar. Passou pelo pai no corredor, despercebido. Queria, de algum modo, acreditar que não havia nada de errado, ou, que se houvesse, fosse apenas uma fase. Foi até o parque, próximo a casa, onde costumava ir quando mais novo. Observou cada detalhe de cada pessoa. Suas expressões, seus gestos. Encontrou no sorriso de uma mulher uma semelhança com o de sua mãe. Um sorriso que contagiava. O ligeiro instante de alegria foi disperso pela expressão triste de uma vizinha conhecida, que caminhava até o menino. Beijou seu rosto, sem dizer nada, e retomou seu caminho. Perturbado, voltou apressado para casa, ciente de que não faria diferença se continuasse lá ou voltasse.


Por alguns minutos, observou sua irmã desenhar. Sua aparência, sempre séria, causava angústia. Chegou mais perto e viu duas mulheres no papel, uma pequena e uma grande.
“Sou eu e mamãe”, disse a menina, quebrando o silêncio.
“Ficou bonito. Mostra pra ela depois, ela vai gostar”, tentou sorrir.
O olhar de pavor que sua irmã lançou era terrível. Com as mãos na boca, evitou o grito, mas não o choro. O pai se dirigiu imediatamente para a sala, perguntando o que tinha acontecido. Era a mesma pergunta do menino.
“Eu não gosto das brincadeiras dele!”
A voz assustada quase não saía. Correu para o quarto, com o desenho na mão. O pai encarou o filho, como se exigisse uma explicação.
“Eu só disse pra ela mostrar o desenho pra mamãe.”
O pai se ajoelhou na sua frente, fitando-o bem nos olhos, e o abraçou, deixando escapar uma lágrima na face. Encontrava dificuldades quanto ao uso das palavras.
“Eu sei que é difícil. É difícil pra todos nós.” Seus lábios tremiam.
Uma estranha sensação de desespero dominou o menino. O coração batia em ritmo fora do normal, chegando a causar dores no peito. Foi como se não tivesse conhecimento do fato ocorrido. As lembranças daquela madrugada o torturavam, de tal modo que o faziam esquecer, ou, pelo menos, não aceitar. Não compreendia ao certo a força daquele vazio que sentia constantemente. Apenas sentia.
“Você precisa ser forte.”
Foram as últimas palavras do pai antes de subir as escadas com passos pesados.


Atordoado, o filho permaneceu intacto na sala, tentando organizar seus pensamentos. Desejava encontrar algum jeito de enfrentar a realidade, de afastar seus pesadelos e delírios noturnos. Não suportava a dor de reviver aquele momento todas as noites.


Naquela madrugada, pretendia ficar acordado. Apagou as luzes do quarto, desafiando o escuro. Queria provar a si mesmo que não sentiria mais medo. Manteve seus olhos abertos durante um longo tempo, até o instante em que adormeceu, sem que percebesse.
Desta vez, o sonho foi diferente. Uma imagem nítida de sua mãe caminhava em sua direção, com o sorriso inconfundível desenhado no rosto. O conforto que sentia provocava um desejo de não acordar mais. Desde aquela noite, passou a viver dessa lembrança, agora não mais dolorosa. Obteve, de algum modo, a certeza de que tudo aquilo era real.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Eu e a solidão

“Viver é saber entender, é sonhar, é viajar... é compreender o que deve se fazer, ou simplesmente, viver é viver.” Não. Não era bom demais. Já era o décimo poema que eu tentava elaborar naquele dia cruel. Dia chuvoso, sem sol, querendo competir comigo. Mas nem um simples poema poderia me satisfazer. Parecia que desde que completei treze anos o mundo inteiro se virou contra mim. Não consigo guardar boas lembranças. Minha vida não tinha mais companhia. Até meu quarto, tão pequeno, não se importava comigo. Quando entro nele, o vazio já o ocupa. A solidão já está sofrendo junto comigo. E por isso deduzo até agora que minha melhor amiga é ela: a solidão.

Podemos realizar muitas coisas sozinhas. Mas hoje, ela estava com preguiça. Geralmente viajamos juntas no meu pensamento, porém para elaborar um poema, ela simplesmente não quis me ajudar. Se não fosse ela, quem seria?

Na manhã seguinte, já era segunda. Tive de me arrumar para a escola e fui andando sozinha naquela rua deserta. Pensativa, como sempre. Pensando em quê? Em nada. Só pensativa mesmo. Só o fato de eu pensar, já me deixava irritada. Ou feliz? Depende. Quando minha mãe grita comigo e eu estou pensando, aí sim eu fico chateada. Mas quando me encontro sozinha no meu quarto, fico contente. É a única maneira de me distrair.


Mal me dei conta, e já estava diante do colégio. Nem o porteiro me cumprimentava. Nem minhas “amigas”, nem meus professores, nem ninguém. O tempo era infinito na sala de aula. Sempre a mesma coisa. Os professores falando, os alunos tirando dúvida, e eu calada. Alguns de outras séries, me achavam muda. Mas eu não era. Eu e a solidão discutíamos muito. Já realizamos uma viagem para outro país, bem distante. Foi bem divertido conhecer outras culturas. E foi aí que percebi que também tinha outro grande amigo: o sonho.
Foi ele que nos conduziu para esta viagem maravilhosa. E sem ele, nunca teríamos nos divertido tanto.

O tempo que parecia ser infinito, passou num instante... “Manuela!”. O quê? Alguém chamou pelo meu nome? Isso era praticamente impossível. Dei uma tremida de passagem e procurei a pessoa que me chamava. Era a professora de Português. Antes de sair de sala para nós irmos embora, ela estava fazendo a chamada dos alunos. E para minha grande infelicidade, não era alguém me chamando para conversar. Se fosse mesmo para conversar, seria sobre minha nota baixa do bimestre passado, que desagradou muito à minha mãe.


Voltando do colégio, a chuva apareceu de implicância de novo. Não tão forte quanto a de ontem, mas fina e pinicando. Molhava meus cabelos compridos, e sussurrava em meu ouvido. Por mais que eu mandasse ela calar a boca, era impossível. Ninguém me obedecia, ninguém me ouvia.


Em casa, corri direto para meu cantinho. Ah, não! Dia de faxina no meu quarto? Não tive outra escolha. Fui para o quintal muito furiosa, com minha mochila ainda nas costas. Quase sentei no chão de terra, mas minha frescura impedia. Peguei meu lápis, um papel, apoiei- me no muro, o que me parecia muito desconfortável, e comecei a escrever. A faxina já havia terminado, mas eu não me importava. O lápis com a ponta bastante gasta, mas ainda não me importava. O papel, o muro sujava... Tudo o que poderia me impedir de escrever, não conseguiu. Não fui só eu que escrevi não. A solidão e o sonho me ajudaram muito. Meu pensamento me deu uma força também enorme. Foi o único momento de minha vida em que eu consegui realizar alguma coisa, e ninguém me impedia. 


Senti a vitória em meu corpo, como se desta vez eu ganhasse a competição contra o mundo, que sempre disputava comigo. Aquela tarde durou séculos e séculos. Mesmo no final dela, pude perceber que ela ia durar para sempre, no meu pensamento. Viu como foi útil ter o pensamento como outro amigo meu?

Chegou terça-feira e eu nunca acordei tão animada. Não entendia o porquê, mas estava feliz. Muito feliz. E fiquei mais ainda quando cheguei na escola, novamente caminhando sozinha. A professora de Português pediu que os alunos elaborassem uma redação, história, ou poesia. Não esperei um segundo para recolher minha história da mochila e entregar nas mãos da professora, dizendo: “Aqui está.”


Ela olhava atentamente para mim, com cara de que não compreendia aquela cena. Porém, ao terminar de ler minha fantástica história, me parabenizou com muita sinceridade, exclamando: “Muito bem, Manu!”. Foi o primeiro elogio que eu havia recebido em toda a minha vida. Minha felicidade cresceu ainda mais porque ela me chamou pelo apelido, querendo me dar atenção. 

A partir daquele dia, ou da última tarde, pude observar muitas coisas: a aula de Português, que era a mais chata, passou a ser a melhor. Os dias de chuva, que eram os piores, passaram a ser os mais divertidos. Meu quartinho, que era o único que eu habitava, dividiu a minha moradia com o quintal. O mundo, as coisas, que se viravam contra mim, pareciam agora ser também especiais. 

E o melhor de tudo, foi que percebi que meus verdadeiros amigos iriam ser para sempre a solidão, meu sonho e meu pensamento... Qual será nossa próxima viagem?

(escrito em 2004, aos 12 anos)