sábado, 29 de setembro de 2012

Cárcere libertador

Sentada na poltrona, assisto ao tempo passar. Há pelo menos três relógios no quarto, uma escrivaninha, um papel com alguns rabiscos, uma cama, um armário com roupas que há muito não são usadas e a poltrona que já me tomou posse. Uma vez ou outra pousa um sabiá na janela. Decerto, não é para mim que ele canta.

Se assim a posso chamar, é desse modo que a vida tem sido nos últimos dias: vazia e escorregadia. Eu tento manejá-la, agarrá-la por algum fio condutor, mas ela desliza, escapa, me foge das mãos. Desaprendi a diferença entre o que é sonho e o que é real.

Este corpo já não me diz respeito, já não obedece mais a meus comandos. Ele grita e treme na tentativa inútil de salvar o que ainda resta de mim, de dissolver os tormentos que agonizam o peito. Sinto-me desconectada do mundo, ausente de mim, despersonificada.

Confesso que já sonhei em ser dona do mundo, na época em que ainda existiam sonhos. Hoje, não controlo mais sequer minhas próprias vontades. Eu não sei nem dar nome a elas. Elas se perderam depois de seguidas convulsões.

Sentir é um ato individual, é próprio. O outro não é capaz de compreender, por mais humano e sensível que o seja. E em meio a tantas reflexões, pergunto: a vida de outrora era realmente melhor? Ou foi tudo apenas em esboço de vida, uma concha confortável?  É agora que não enxergo nada, ou antes não enxergava?

Por vezes, penso que teria sido melhor seguir em infinita anestesia. As dores me seriam desconhecidas, os ventos fortes seriam naturais e os dissabores seriam passageiros. Eu perdi o equilíbrio, o ponto de apoio que me sustentava, a integridade que me fazia própria. Os objetos estão distorcidos, as cores estão apagadas, o que era doce virou amargo. Cheguei a acreditar que a vida ao meu redor estava diferente. Mas não: sou eu que estou.

Não imaginava que um ser humano pudesse experimentar todas essas sensações a um só tempo, que se convergem em uma única: a dor de não viver. E não há nada de poético ou de abstrato nisso. Eu sinto a morte, eu vivo a morte.

Eu vejo a minha sombra em todos os cantos do quarto. Eu transfiro toda a minha incompletude aos mínimos enfeites da mesa. Retirei o espelho da parede para não mais ter que encontrar aquele rosto cinzento, impessoal e disforme – não o reconheço. Enceno um sorriso apenas para relembrar o gesto facial. O seu significado é irrecuperável.

E apesar da escuridão que me dá forma, das ideias temerosas e fantasiosas que me dominam, insisto em tentar compreender ao menos parte da minha existência. Loucura não é a perda total da razão: é a busca contínua por ela. Porque não há nada mais desconcertante do que tentar entender.

São nove horas da manhã, é inverno e estamos em julho. Mas poderia ser dezembro, duas horas da madrugada e verão.

3 comentários:

  1. Lindo demais!!!
    Parabéns, prima!!!!

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  2. Sei o que é desejar a "infinita anestesia". Nela, não sentimos dor, mas também não sentimos a delícia, de ser quem é. Cada palavra sua é legítima e caminha para essa delícia. Só ouso discordar em uma coisa: de que não há nada de poético nisso. Da dor também se faz arte e esse seu conto comprova isso.

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  3. Fernando Pedro Lopes31 de março de 2013 às 16:03

    Bruna, me (co)moveu a intensidade literária de tua reflexão sobre a dor do não viver. Porém só quem vive sabe que não há metáforas que expliquem o sentido da existência. Talvez porque a vida é por si uma explicação sem razão, sem entendimento racional, onde a emoção se intui, como o significado plural de cada palavra que elegemos para nos falar. Continue suas palavras, a vida agradece sua presença.
    Parabéns por seu blog!
    Fernando Pedro Lopes

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