quinta-feira, 5 de junho de 2014

Percurso de um vocábulo

Do conceito
Nasce a palavra
Perdida, indefinida
Sintaticamente
Inexistente.

Em vozes vertida
Ganha uso, ganha vida
Desfaz e refaz
A sua morfologia.

Variável em geografia
Mal atribuída
Confundida
Semanticamente
Dependente.

Evocada por mestres,
Drummonds e Severinas,
Enuncia e anuncia
A sua polissemia.

terça-feira, 3 de junho de 2014

Um instante


A cada instante sou uma. Se não fui ou não serei, não o sei. Eu sou hoje, sou agora.

Sou o piscar dos olhos. O bater da asa do beija-flor. O flash da máquina fotográfica. O suspiro de um susto. A angústia dos que esperam.

Eu não espero nada. O futuro não me pertence: eu só pertenço a mim. Embebedo-me de cada palavra que escrevo, que é passado e já não me serve. Quero me ser inteiramente para não perder nenhuma parte da minha integridade. Nenhum resquício do que sou. Quero apossar-me do impalpável fragmento de tempo, que é só meu. Quero tatear o profundo ímpeto de existir. 

Eu deixo-me ser para entender.

Porque os instantes são múltiplos. Mas a essência é uma.

segunda-feira, 2 de junho de 2014

Âmago

Não quero enfeites, nem o excesso.
Como uma música sem melodia,
Como um céu noturno, sem lua,
Como uma palavra sem forma,

Quero-a nua, toda nua.


quinta-feira, 22 de maio de 2014

Multiface

Mais uma vez, atrevo-me a falar do amor. Ou melhor, de um amor. Porque o amor são vários. O amor se transforma, muda de formato, vai e volta. Ou não volta.

Não existe uma única referência para o amor. O amor não é aquilo que a gente vê ou ouve: esse é o amor do outros. O amor tem que ser nosso.

A definição universal do amor não dá conta de sua essência, que, por si, já é fragmentada.

O amor jamais pode ser reduzido ao sublime. O amor também é físico, sujo, às vezes egoísta.

O amor pode nem ser amor. Pode ser engano. Pode ser nada. E o nada revestido de amor pode ser tudo.

Atitudes não determinam o amor: ações sofrem influências. Até as palavras são obstruídas pelo ar e pelo som, ou pelo papel.
 

E tudo se perde.

Procuro exteriorizar o interno, conceptualizar o abstrato, dar forma ao incorpóreo.

E, mais uma vez, fracasso.

segunda-feira, 19 de maio de 2014

É difícil descobrir com exatidão aquilo que se necessita, e até mesmo penoso. A dor aparenta ser a única força do corpo, expelindo com crueldade qualquer sinal de prazer. Entregar-me, pois, ao sofrimento, só alimenta a fraqueza. Lutar e rebater, no entanto, desgasta, principalmente quando em vão.

Eis que surgem, em algum instante, uma imagem, ato, sentimento, sensação, oriundos sabe-se lá de onde, vitais e renovadores. Breves ou longos, o mais curioso é que não são passíveis de entendimento. Apenas nesse momento percebo que é inútil a procura incessante por aquilo que se imagina ser o ideal. Sem luta e, ao mesmo tempo, sem fuga, permito ao mundo me tomar nas mãos e me fazer sentir, inesperadamente, o que eu própria não saberia desejar.

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Uma ou mais vozes

Vozes gritantes
Veementes
Covardes

Tenras
Caducas
Vãs e selvagens

Roucas
Severas
Caladas enfim

São vozes dos outros
De todos
De mim.

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Esgotamento


Somente órgão é meu coração.
E a terra dura
É complemento
Dos pés, do tronco, da mão.

Ressecam os olhos
Em vidro moldados
Não riem, não choram:
Ao pó são fadados.

Os lábios serenos
Padecem da vida
Tampouco vivida,
Amada ou sofrida.

Máquina perfeita
Sujeita à imperfeição.
Pele, osso, matéria vil:
É a minha composição!

Ativo ou inativo,
Quente ou frio,
Somente órgão é meu coração.

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Contradição

Faz-se dia
Eu anoiteço
Cai a gota
Endureço

Na sombra
Eu acendo
No vácuo
Me preencho

Nasce o rio
Eu definho
Cai o corpo
Regenero

Mascarada
Me desnudo
Em festejos
Ando armada


Porque sou muito e pouco
Tudo
E nada.

quinta-feira, 25 de julho de 2013

Do outro lado

De longe, era apenas um ponto. E de perto? Supôs que não poderia saber, pela distância em que se encontrava. Mas não fez questão de se aproximar.

A coisa parecia adquirir novos formatos, depois retornava ao original. A imagem turva provocada por uma visão já prejudicada não definia cores. Era algo meio preto, meio marrom, meio acinzentado.
                
Poderia ser, quem sabe, uma pessoa. Não tinha certeza se os movimentos do ponto eram mero engano de seus olhos. Às vezes, o via aumentar, como se estivesse mais perto, às vezes diminuía, tornando-se quase inexistente.
                
Um ser vivo qualquer. Talvez um animal, uma árvore. Mas aquilo flutuava! Já flutuava antes? Seu entorno era deserto e obscuro. Mesmo iluminado, não teria sido facilmente decifrado.

As coisas mais esquisitas surgiram como possibilidade. Uma nave que logo iria aterrissar. Alguém praticando levitação. Um balão sem força para subir. Uma sombra, um reflexo de um outro ponto qualquer não avistável.

Por um instante, aquilo nem parecia real. Assemelhava-se às figuras distorcidas que só conseguimos enxergar de olhos fechados. Ao menos tinham identidade, sabia-se que eram imaginárias.

Decidiu que não era seguro se aproximar. Se ninguém o havia feito, não ousaria. E, de certo modo, não se sentia mais em conflito.

Apegou-se firme à ideia de que aquilo não seria outra coisa senão um ponto. De que valeria descobrir que fosse diferente? O diferente é desconhecido, portanto, perigoso.

Bastava sabê-lo assim.